segunda-feira, 15 de outubro de 2012


DESFAZENDO DESERTOS



1. Habitando o Deserto

Conta a história que uma frágil nômade, oriunda de uma tribo disfuncional, caminhou durante 45 anos pelo deserto, um lugar inóspito e que não oferecia segurança a ninguém.

Ela caminhou por esta estrada árida quase sempre sozinha, no afã de encontrar as razões de sua extrema fragilidade. 

Atravessar o deserto foi para ela como se seguisse uma viagem por mar aberto. Neste imenso mar de areia raramente encontrou tranquilidade, no entanto, foi neste lugar que ela percorreu as paisagens mais marcantes de sua vida.

À medida que desbravava os caminhos inóspitos, defrontava-se com os sentimentos áridos da culpa, dos medos, das perdas, das incertezas, das dores e de raivas contidas.

Foi uma criança castrada por um pai violento e espelhada em uma mãe sofredora, em face disso, não aprendeu a expressar suas genuínas necessidades. 

Entrou na adolescência carregando sonhos infantis não realizados e experimentou a aridez do medo. Esse sentimento a acompanhou em quase toda a sua trajetória de vida, não só comprometendo suas escolhas, como também, sua saúde e seus relacionamentos.

A vida adulta chegou dentro desse cenário de medos e incertezas. Crescer para ela não foi um ato fácil e tampouco elaborado, pois muito jovem teve que assumir responsabilidades tal qual um adulto que tem uma vida recorrida. 


2. Perdendo o norte

Quando perdeu os pais, seguiu por esse caminho, emocionalmente anestesiada. Foi como ter perdido os rastros nas areias, apagados pelos ventos. Sentiu-se como quem tivesse perdido as referencias de uma vida... O Norte do deserto.

Durante anos sonhou com a mãe falecida caminhando pelo deserto ao seu lado, sinalizando os caminhos de sua vida. Por vezes, percebeu que esses sonhos lhe traziam mais que um leve bem-estar. Na verdade, esses sonhos foram lhe mostrando, ano após ano, que o que internalizamos não se perde jamais.

Perder o norte é não enxergar caminhos orientados. É deixar-se ser levada pelos instintos de proteção, tal qual um animal ferido. 

Descobriu que quanto mais se afastava da imagem doce e suave de sua mãe, mais se parecia com ela e que a imagem do pai lhe torturava a mente e oprimia suas reais emoções.

Embora órfã, continuou seu percurso sem rumo buscando o norte do deserto... Um sentido para sua vida. Muitas vezes caiu, noutras levantou com algumas dificuldades. Chorou suas lagrimas de saudades, esse sentimento que só os que perdem entes tão queridos conseguem entender. 

3. As tempestades de areia

Numa fria noite do deserto ela viveu a experiência mais dolorosa para os nômades: As tempestades de areia... A dor da separação.

As tempestades de areia são ventos fortes que fazem com que o deserto se torne perigosamente hostil. Busca-se abrigo até que elas passem, todavia, quando se está dentro dela, é como se estivéssemos perdidos para sempre.

Nestes momentos, creio, ela viveu uma das maiores dores da idade adulta ao encontrar-se no centro de ventos tão destruidores.

A pior situação em um relacionamento, certamente, é quando acreditamos que temos a posse e a propriedade de nossos parceiros. O que não é possível e nem saudável. Na verdade, devemos fazer parte do mundo de quem amamos, mas não temos o mundo de quem amamos. 

Ela compreendeu essa lição e, em um gesto, talvez desesperado, rompeu o elo que lhe prendia àquela relação de tantos anos. Uma relação de opressão.

Sofreu os revezes dessa decisão, mas compreendeu que seria melhor seguir sozinha a ter que ver seu cotidiano destruído. Ver seus sonhos tão emaranhados na vida do parceiro, sempre a espera que ele sinalizasse o momento em que ela poderia realiza-los. E o preço que pagou por sua liberdade foi muito alto, muitas vezes lhe custando a saúde. 

Sabe-se que em determinados momentos em que ela fraquejou, sentiu-se perdida em seu próprio caminho, fruto de sua decisão em romper uma união tão duradoura. Porém, ela nunca se arrependeu da decisão tomada. 

Carregou o estigma dos nômades e fez do seu caminhar uma coleção de paradoxos. Muitas vezes foi preciso que ela convivesse com uma grande solidão para entender a necessidade do outro. 

4. Os fossos desérticos

Nem toda a paisagem do deserto nos leva os olhos ao horizonte que oprime a vida dos nômades, fazendo-nos acreditar que só existem paisagens planas e o céu. 

Ela experimentou também a inclemência dos fossos desérticos... As depressões. Esses fossos estão localizados, não raras vezes, entre as dunas e quando o nômade é levado a eles, é como se viver em um eterno cair.

Nas depressões desérticas vive-se uma inclemência climática, extremos de frio e calor. As oscilações climáticas, trazidas pelas depressões, não perdoam ninguém e não existem fortalezas para se proteger dessa instabilidade.

Ela viveu por alguns anos nas depressões desérticas e esse foi o cenário opressor do seu universo. Era como se cada dia ela vivesse uma espécie de inferno. 

Quem vive nas depressões desérticas vive a dor predadora das inquietações, da falta de paz, da apatia. A depressão é o desertor de nós mesmos.

Ela seguiu dentro deste espaço incomensurável, acreditando que seria melhor sentir a dor do desconhecido a ter que continuar sentindo o horror do seu cotidiano: Seu mar de areia. E num ímpeto de desespero, tentou por fim a sua triste jornada pelos caminhos áridos.

O desespero é um sentimento árido. Senti-lo é sentir também desesperança, não ter perspectivas ou alternativas. E ela permaneceu neste lugar de maneira inerte. As horas se passavam sem importância e ela nem mesmo sabia se era dia ou noite.

Muitos nômades passavam por aquele lugar onde ela se encontrava reclusa, para alguns ela pedia ajuda, alguém que lhe estendesse a mão, que lhe socorresse daquele buraco. Não era ouvida, não era compreendida. 

E ela pensava nos oásis que tinha cruzado pelos caminhos do deserto. Onde estariam eles? Onde estavam os amigos de uma vida? Não havia ninguém.  Com a força interior que ainda lhe restava, conseguiu, em um dia qualquer do deserto, libertar-se dos fossos. Ela chorou suas dores mais profundas e rogou aos céus ajuda. Compreendeu que o melhor do cair e poder levantar-se. E dessa maneira o fez. Caminhou, ainda que sem rumo, em busca de ajuda.

5. O oásis

Acredita-se que os oásis são paraísos no meio do deserto. E o são, porque sempre aparecem próximo aos fossos desérticos. É um lugar para se abastecer e descansar.

Ela encontrou seu oásis personificado na figura de uma mulher que lhe estendeu os braços. Deu-lhe os subsídios para que ela se reerguesse. Essa mulher lhe deu abrigo para as noites frias e dias calorosos. Deu-lhe afetos, tal qual uma mãe. 

Descansou por longos dias nesse oásis e compreendeu a força que existe em uma linda amizade. Dia a dia, ela se recuperava dos sentimentos áridos do seu caminhar. 

Narrou sua história e os perigos pelos quais passou nesse seu caminhar sem norte. Seu oásis era uma alma iluminada, abençoada por afetos piedosos. Ouviu instruções, aceitou os bons conselhos e reaprendeu a caminhar. 

Voltou a ter fé na vida e a continuar sua caminhada em busca do norte, da saída ou de algo que lhe devolvesse o sentido da vida. Aprendeu com as experiências do seu oásis e foi se fortalecendo para sua nova partida.

Já refeita das dores e dos sentimentos áridos sentidos durante sua travessia no deserto, ela agradeceu a mão amiga do seu oásis e partiu.


6. A Miragem

Mais uma vez, seguiu sozinha e, após muitos anos de extensa caminhada, ela conheceu uma miragem e por ela se encantou. As miragens são fenômenos físicos e não ilusão de ótica. É o resultado da propagação da luz na atmosfera e que muitas vezes, transforma a paisagem no solo em espelhos.

Sem dúvida, quando se está diante de uma miragem não há temor, são paisagens agradáveis de ver. Ela encontrou o que tanto buscava nas areias do deserto.

Contemplou sua miragem por alguns instantes e sentiu-se feliz, algo como o prenúncio do bem em sua vida. Essa miragem veio até ela corporificada na figura de um homem doce, carinhoso e romântico.

Ela, a nômade, estava carente de uma vida inteira e queria alguém que lhe compartilhasse carinhos, que tocasse seus cabelos, que olhasse bem fundo nos seus olhos e deles retirassem o sal de suas lagrimas...A dor de nunca ter sido amada.

Descobriu que no deserto também se aprende sobre o valor do amor. Ela se entregou à miragem com tanta confiança, amor, respeito. Eles se amaram, entregaram-se um ou outro sem reservas. Era como se já estivessem sido predestinados um ao outro.

Viveram dias de glória, apaixonaram-se. Retiraram das areias quentes do deserto o bálsamo para as feridas da solidão que ambos sentiam. Eles foram felizes.

Projetou em sua miragem, os seus desejos e suas necessidades de afetos mais profundos e fora correspondida, recebendo das areias o significado das paixões.

Descobriu, através desse amor, que vale à pena transcorrer um caminho tão longo para se encontrar a felicidade. Construíram o amor com linhas de esperança. A cada dia o deserto se tornava mais ameno e a certeza de que logo encontraria o norte, fazia-se mais presente.

Alimentou esse amor, ainda que essa paixão, por vezes, transformasse seu coração em um palco de verdadeiros duelos nas areias. A razão lutava contra a emoção, a ética e a moral se fazendo imperar frente aos desejos, o “ser” e o amargor do “não dever ser”.

Suas frustrações foram aos pouco se acalmando à medida em que descobria, através desse amor, que a vida vale à pena ser vivida e que a esperança em dias melhores é um sentimento possível até mesmo para aqueles que atravessam seus mares de areia. 

Eles viveram o melhor de suas vidas. Descobriram similitudes em suas jornadas de vida. Sua miragem, cada dia, resgatava-lhe o melhor dos sentimentos contidos, fechando algumas lacunas que existiam em seu caminhar. 

Experimentou sentimentos inimagináveis. Entregou-se aos encantos, às delícias de um amor que aos poucos tomava forma. Seus sentimentos áridos foram sendo transformados e ela, dia a dia, começava a enxergar a possibilidade de encontrar o norte.

E quando a nômade aceitou os fatos que a natureza lhe impunha, nas palavras, conselhos, orientações de sua miragem, não fora apenas sábia, como também, capaz de encontrar o verdadeiro caminho para a sua libertação. E também compreender seus sentimentos de uma forma mais madura.

Ela refletiu sobre o que é o amor maduro, foi capaz de reconhecer que o verdadeiro amor dos seres apaixonados, não pode ser incondicional, porque a essência do outro já traz em sua origem condições. 

Entendeu que um amor de verdade tem que ter respeito pela realidade do outro que se ama. Entendeu que um grande amor não é a união de duas metades, mas sim de dois inteiros. Entendeu, por fim, que todos trazem defeitos e qualidades em suas maquetes corporais e que aceitar essas diferenças naturais é um ato de amar verdadeiramente e condicionalmente, é o caminho para se viver o amor maduro.

7. Encontrando o norte

Reconheceu que ao longo de sua vida conteve raivas e que isso fizera muito mal a ela, não só fisicamente, como também emocionalmente. A aridez da raiva se voltou para dentro de si mesma, atacando-a, destruindo-a. Cresceu contendo esse sentimento em um corpo que não oferecia perigo a ninguém e apesar de sempre parecer alegre, estava mortalmente ferida.

Todavia, quando aprendeu a dizer NÃO e a descobrir a força e a necessidade desta palavra, suas dores físicas e morais foram sendo suavizadas.

Encontrar o norte do deserto foi se ver capaz de traçar seu próprio destino, nos braços, quem sabe, de sua doce miragem. E a partir disso, suas feridas antigas foram, à medida que suavizava a aridez dos seus sentimentos, sendo fechadas e acalmadas.

Aprendeu a tratar as pequenas feridas físicas e psicológicas com o silêncio. E sua recompensa está sendo a liberdade pessoal e autodisciplina em proporções iguais.

O deserto tornou-se para ela algo mais que um caminho árido e solitário. Transformou-se em um excelente espelho para ver a natureza humana, ensinando-a a ficar mais dura e forte diante da vida.

Começou a desfazer seu deserto quando tomou consciência e coragem em admitir que foi criada para ser agradável, quando deveria ser sincera; que foi flexível, quando deveria ser autêntica e que foi adaptável, quando deveria fazer valer suas opiniões.

Deixar de se ver como vítima dessa imensa aridez e perceber que suportaria as emoções relacionadas às suas feridas mais profundas, fez dela uma pessoa mais madura e humana.

Aprendeu que a solução dos seus conflitos não estava na distância que mantinha de sua realidade dolorosa, mas na forma e na coragem com que a olhou de frente.

Descobriu nas areias que a sensação de morte iminente que a vida sempre lhe impôs, na verdade não significou a iminência de uma morte física, mas psicológica.

Olhou de frente para seus medos e perguntou a si mesma quais as imagens de sua vida queria que morressem? Quais as partes dela mesma precisavam morrer? Quais os modelos de vida gostaria que morressem durante seus súbitos ataques de medo?

E obteve respostas. Entendeu que, durante seus ataques de medo, ela manifestava sua vingança como ser reprimido e que estes episódios a atacavam sempre que ela se encontrava perigosamente distanciada dos seus verdadeiros sentimentos.

A trajetória da nômade durou muitos anos no deserto e o que ela aprendeu de amor e de vida, extraiu das areias. Esses caminhos, aparentemente, sem rumos ao cruzar o deserto com o objetivo de encontrar sua verdadeira identidade, trouxeram-lhe maturidade e experiências reconfortantes que lhe fizeram entender que o real sentido da vida não está na busca da felicidade, mas na doce descoberta do seu significado.

E como aprendizado de vida ela pode compreender que o paraíso nem sempre está em algum lugar do futuro ou mesmo em paisagens calmas.

Sua jornada pelo deserto lhe fez compreender que o paraíso pode estar também em nosso presente, onde quer que nos encontremos, desde que estejamos em paz e resgatando a possibilidade de amar verdadeiramente.

Hoje, ela inicia sua caminhada para a saída do deserto. E, através da simbologia de sua miragem, ela, pela primeira vez, vislumbra o mar. O que a espera? Talvez o sentimento de calmaria ou, quem sabe, a sensação mágica da realização de tantos sonhos contidos pelo deserto. 

Sua miragem lhe espera próximo ao mar....Os ventos que vêm do mar, prenunciam uma vida mais feliz, embora ela saiba que sua trajetória pelo deserto tenha sido a grande experiência de sua vida, ao tomar consciência que, através do amor, os sentimentos áridos podem ser trabalhados, transforados e mesmo enriquecedores...Que sinalizam que a força de um homem está em sua tenacidade.

E para aqueles que acreditam que os mares de areia são hostis, nossa nômade nos mostrou, através de sua história de vida, que nem sempre, quem cruza os desertos traz areia no coração.

Ana Sá Peixoto

domingo, 16 de setembro de 2012

O DESPERTAR DAS HORTÊNCIAS





Ela gostava de jardins. Tinha uma alma suave e uma paciência para realizar as atividades mais sublimes, como as de cultivar flores. Já estava acima da meia idade quando ganhou de presente de uma amiga uma muda de uma flor espetacular: Hortência azul. A cor dos seus olhos. 

Imediatamente, foi até o jardim para plantar aquele exemplar que tanto sonhou em ter em seu lindo jardim de flores multicoloridas. Esmerava-se, dia a dia, no cuidado com suas flores. 

Mas aquela flor especial diferenciava-se das demais. Não vinha a luz, não desabrochava. O que a deixava triste. Ela pensava: “o que falta para que esta flor desperte se tenho tanto cuidado com ela? Talvez o solo? Talvez faltasse uma iluminação melhor?” Perguntava ela sempre que visitava seu jardim pelas manhas. 

E isso se repetia ao longo dos anos. O que tinha de tão especial naquela flor que se recusava a florir? Penso eu com certa aflição. O que exatamente aquele pequeno arbusto representava para ela? 

Ao certo que não encontrei uma resposta satisfatória. Ela sempre dizia:” Essa é a flor da minha vida, a que sempre sonhei em ter no meu jardim!”. 

Imagino como deveria ser frustrante para ela acordar todas as manhas e seguir seu percurso de sempre: caminhar por seu jardim e ser surpreendida pela imagem de uma bela flor azul que nunca desabrochava e ela dizia sempre: “Ela terá a cor dos meus olhos!”. 

Os anos se passaram e aquele pequeno arbusto cresceu, mas não floria. Ela já sem esperanças de ver a sua linda flor florescer, começava a dar sinais de tristeza. Havia manhas em que ela nem sequer ia mais ao seu jardim e como justificativa, sempre dizia: “Eu sei que ela não floriu hoje.” 

Um dia, ela adoeceu gravemente, o que a impossibilitou de cuidar de seu jardim. Ficou em uma cama, praticamente limitada de tudo. Entregou os cuidados do jardim a um jovem rapaz e disse a ele: “cuide daquele arbusto com carinho, lá existe uma flor linda que ainda está adormecida.” 

Sua condição de saúde piorou muito e ela teve que viajar para submeter-se a uma invasiva cirurgia. No dia de sua viagem ela, com dificuldades e em uma cadeira de rodas, pediu ao seu filho que a levasse ao seu jardim. Ela queria ver, talvez, quem sabe, pela ultima vez, aquele recanto que lhe trouxe paz e alegria para os dias sombrios. 

Seu filho a levou ao jardim e ela passeou entre as flores. Algumas ela cheirava, outras ela arrumava. Dirigiu-se ao arbusto onde dormia a sua Hortência Azul. Olhou-o de perto, verificou, com certa dificuldade, suas folhagens e percebeu que a flor não havia nascido. Uma lagrima brotou dos seus olhos. Ela estava triste e como sem qualquer uma esperança de ver desabrochar a flor que representaria a sua vida, ela disse ao filho, com voz embargada de emoção: “Podemos ir, já revi tudo que tinha vontade de rever. Posso dizer que sigo para essa viagem com o perfume do meu jardim e com a imagem multicolorida dele, mas sigo também triste, porque minha flor não nasceu”. 

Seguiu de viagem e submeteu-se a difícil cirurgia... Um mês após ter sido transplantada, retornou a sua casa. Estava fraca, mas feliz ao retornar ao lar de quase 50 anos. A primeira coisa que viu, foi o seu jardim. Percebeu que não estava tão cuidado e que algumas flores estavam diferentes. Foi imediatamente ao seu arbusto de hortênsias e, mais uma vez, foi tomada de uma frustração golpeante. Ela não havia nascido. Havia dado ordens, enquanto viajava que trocasse de lugar o arbusto e o colocasse em um local mais ensolarado, o que foi feito. 

Os dias se seguiram e, como recomendação medica, ela deveria fazer exercícios respiratórios diariamente. Decidiu faze-los no jardim, sempre ao amanhecer. Ela dizia que aquele lugar lhe transmitia paz, sossego e que os ventos ali sopravam com mais pureza. 

Havia um banco no jardim, que ficava bem em frente ao arbusto das hortênsias. Lá ela se sentava todas as manhas, enquanto sua filha lhe ajudava com os exercícios respiratórios. Ela, embora cumprindo todas as recomendações médicas, sabia que seu estado de saúde era grave e que talvez, para ela, não lhe restava tanto tempo de vida. Mas mesmo assim, com dificuldades cada vez maiores, pedia para ir ao jardim. 

Certo dia, ela piorou gravemente de seu estado de saúde e teve que viajar de urgência para nova reavaliação de saúde, com a equipe medica que havia lhe operado há dois meses apenas. Ficou internada por dois meses nesse hospital e embora já quase sem forças de sobreviver, perguntava sempre pelo seu jardim, que ficou aos cuidados da filha. 

Ela foi submetida à nova cirurgia, no entanto, não resistiu e veio a falecer no dia do seu aniversário, após dois meses de internação no hospital. Seus familiares lamentaram a grande perda dessa mulher tão querida e amada por todos e que tinha na face um sorriso amável e um olhar cativante. Seus olhos eram como duas contas azuis que contrastavam com sua pele clara e cabelos negros. 

Enquanto o corpo da mãe falecida não chegava a sua cidade para os funerais, seus outros filhos ficaram na casa dela aguardando o momento da chegada do corpo. Estavam sentados no banco do jardim, chorando a grande perda, foi nesse momento em que seu filho parou um instante e olhou o arbusto de hortênsias que, por falta talvez de cuidados, estava quase todo coberto pelas flores vizinhas. Neste momento ele percebeu que havia uma linda flor de um azul intenso ao meio das outras flores. 

Ele, emocionado, comunicou a irmã e ambos foram até mais perto da planta a fim de verificarem se realmente se tratava da flor que a mãe há quase dez anos esperava desabrochar. 

Tomados por uma grande emoção, viram que a Hortência havia despertado, nascido, florido e vindo à luz. Ficaram admirando aquele cenário tão lindo que a natureza lhes havia presenteado em um momento de grande sofrimento. 

A filha tomou a flor azul entre suas mãos, sentiu a textura, o brilho e o perfume que vinha daquela flor tão esperada. Era linda!. 

Quando o funeral da mãe terminou e todos deveriam seguir ao cemitério para o ultimo adeus para este ente tão querido, a filha retirou, com cuidado, a flor azul do jardim, colocou-a em um vaso pequeno de cristal e levou-a ao cemitério. 

Ficou com aquele vasinho nas mãos até a sua mãe ter sido sepultada. Todos já haviam ido embora, mas ela ficou. Queria fazer a ultima reverencia a sua mãe. Queria estar a sós com ela nesse momento de expressão maior de amor. 

Assim que todos saíram, ela levantou-se, dirigiu-se ao jazigo da mãe e dentro dele colocou o vasinho contendo uma linda Hortência azul. Fez uma oração e depois, em voz baixa e embargada de emoção e lagrimas disse baixinho, como que falasse para si mesma: ”Minha doce mãe, sua flor nasceu. E venho trazê-la para que ela te de alegria e que sua alma siga em paz para a eternidade. Descanse mãe, pois seus “olhos azuis” floresceram.”. 

Na semana seguinte ao sepultamento da mãe, outras hortênsias começaram a florir em vários matizes de azul. Meses se passaram e a casa teve que ser vendida. A filha fez apenas um pedido ao novo proprietário, que ele apenas conservasse, se achasse necessário, o arbusto de hortênsias azuis. À principio o proprietário não compreendeu muito bem, mas aceitou o pedido. 

Hoje a propriedade não tem mais aquele vasto jardim e embora as novas construções tenham tomado conta daquele que foi um recanto de paz e sossego, o arbusto das hortênsias continuaram existindo e adornando a entrada da nova casa. O pedido da filha fora atendido pelo novo proprietário e ele havia comentado que tinha uma relação de cuidado com aquela flor. 

Penso no que poderia estar simbolizado naquela espera de anos por uma flor? Quem sabe uma relação que pudesse traduzir a vida amável e afetuosa daquela mulher de olhos azuis tão profundos. Imagino que onde ela estiver hoje na eternidade, sua alma está feliz. 

A vida às vezes é tão simples, que para algumas pessoas, uma flor pode representar a felicidade e traduzir uma vida que a vida valeu a pena ser vivida. E o que mais me chama atenção é que vida e morte são mãos que se entrelaçam. 

Em um mesmo dia essas mãos se entrelaçaram. E uma história de afetos se deixou transparecer na vida se foi e outra veio à luz. Uma relação de amor vivida entre ela e sua flor. A vida tem as suas compensações e através da flor desabrochada, aquela suave alma que partiu para eternidade, teve perpetuada na terra o melhor de sua imagem. Sim, seus olhos azuis floresceram...



Ana Sá Peixoto
                                         


domingo, 26 de agosto de 2012



 O Tempo e o Silêncio


Aprendi que o silêncio nem sempre é a linguagem dos sábios e dos justos, mas também, dos covardes, dos inertes e dos que inviabilizam o perdão.

Aprendi que o tempo nem sempre cicatriza todas as feridas ou acalma todas as dores, mas também aprisiona a dor em um espaço criptado, encerrado em si mesmo, o que impede que um sentimento genuíno possa ser simbolizado.

Ana Sá Peixoto

segunda-feira, 9 de julho de 2012


                                     A FLOR AMARELA 





Ela tinha sete anos de idade quando acalentou um sonho de dar uma flor ao seu pai.  Seu pai trabalhava muito e via pouco os filhos. Era um homem distante, as vezes frio, as vezes melancólico. Havia violência em seu lar e esta criança cresceu neste cenário de medos.  

Era uma criança doce e essa docilidade herdou de sua sofrida mãe. Sonhadora como qualquer criança de sua idade, imaginava o dia em que criaria coragem de presentear o pai, homem sempre distante das demandas familiares. 

Um fato marcou sua história infantil e, quem sabe, também toda a vida adulta. Ela estudava em uma escola primária e todas as manhãs, ao final das aulas, ela observava uma imagem que considerava um ato de representação máxima do amor. 

Havia uma coleguinha sua de escola, cujo pai sempre a buscava no término das aulas. Essa sua amiguinha  recebia o pai com uma delicadeza de afetos. Sempre que o pai ia buscar sua amiguinha, ela, a amiguinha, arrancava uma flor do jardim da escola e oferecia ao pai, acompanhado sempre de um afetuoso abraço e beijos. Isso se repetia cotidianamente. 

Nossa doce criança, protagonista desta história, assistia à cena comovida por lágrimas. Quanto ela queria fazer a mesma coisa! Mas não podia por que seu pai era sempre ausente nas horas em que ela se encontrava acordada. 

Um dia, essa amável criança, criou coragem em realizar seu doce sonho, presentear o pai que tanto amava e quem sabe, receber dele aquele tão esperado abraço e beijos afetuosos. 

Numa tarde de um dia qualquer da semana, ela chegou da escola e foi ao jardim de sua casa e percebeu que ali havia várias flores amarelas. Escolheu uma, a mais linda e perfumada. Esperou a noite chegar, pois seu pai sempre chegava do trabalho por volta das 19:00h. 

Com ansiedade, esperava que as horas se passassem logo e quando a noite chegou, ela recebeu o pai na porta, porém não pode falar nada porque ele dirigiu-se imediatamente à cozinha para jantar. Sua mãe estava sentada à mesa junto a ele, no momento do jantar. Parecia que estavam discutindo. Mas o coraçãozinho dela não entendia a hora de uma espera. 

Enquanto seus pais jantavam, ela correu para o jardim e retirou aquela flor amarela que havia contemplado o dia todo. Arrancou-a do jardim, limpou-a para que não houvesse formigas e correu até a cozinha onde seus pais continuavam discutindo, brigando, mesmo enquanto jantavam. 

Ela tomou fôlego e num impulso, próprio de uma criança que está para realizar seu grande sonho infantil, ela correu até o pai, com a flor amarela na mão, abraçou-o fortemente, porém, em seguida, foi agredida por ele com um tapa em seu rostinho miúdo. Ela não se lembrou de nada imediatamente após o episódio, porque foi jogada ao chão. Quando voltou a si, estava no colo de sua mãe que a levava para seu quarto. 

Sua mãe, docemente, a colocou na cama e aos poucos foi voltando a si e tomando consciência do que havia acontecido. Chorou... Enquanto sua mãe tentava acalmá-la ela percebeu que a flor amarela ainda encontrava-se presa a sua mãozinha. Mesmo com todo o ocorrido, o cuidado com a flor, que seria o presente que daria ao seu pai, não conseguiu desprender-se dela, talvez, pelo zelo ou o cuidado que todos têm com algo que se estima muito. 

Algumas horas se passaram e ela, a criança, já estava mais calma, foi nesse momento que ouviu o diálogo dos pais sobre o ocorrido. Sua mãe perguntava a ele: "Por que você fez isso com ela? Ela é apenas uma criança". E ouviu a resposta do pai: “Fiz para que ela nunca mais se meta em conversas de adulto”. 

Após ter escutado isso, chorou novamente. Pergunto-me neste momento, como pode uma criança de sete anos de idade compreender o que é uma conversa de adulto? 

Logo em seguida, sua mãe voltou ao quarto da criança porque a escutou chorando. Levou em suas mãos umas compressas de gelo e depositou no rostinho de sua filha amada e disse: “Filha, segure essa compressa até o gelo derreter, porque seu rostinho ficou machucado". A criança acenou que sim e lá permaneceu até adormecer. 

Na manhã seguinte, ela levantou-se para ir a escola e olhou-se no espelho, viu uma imagem que a assustou e deixou seu coraçãozinho apertado. Em volta de seu olho, na face esquerda, havia um hematoma, estava com a pele arroxeada. Chorou mais uma vez... Sofria. 

Sua mãe entrou no quarto e disse a ela: “Filha, você não irá a escola essa semana até que esse seu dodói cicatrize". Entendo a preocupação de uma mãe frente a uma grande violência. Como permitir que sua filha fosse a escola com marcas de agressões, de violência doméstica? Certamente que a professora iria perguntar a origem daquele machucado e sabemos como é a inocência de uma criança, certamente ela diria, sem querer claro, prejudicar o pai: “Foi meu pai quem me bateu”. 

Essa pergunta e respostas seriam inevitáveis e por isso a decisão da mãe em não deixa-la ir para escola enquanto ela não cicatrizasse. Pergunto-me, mais uma vez, qual o dever de um pai ou de uma mãe em proteger seus filhos da violência doméstica? Penso estar diante de um dever legal de dar proteção integral a criança que sofre este tipo de abuso. Mas, como fazê-lo quando estamos diante de uma linha tênue que separa a prática protetiva da prática abusiva? Sua mãe silenciou... 

Uma semana se passou após o triste fato ocorrido e ela, nossa protagonista desta lamentável história, voltou para a escola e como de costume, presenciou novamente aquela cena de sua amiguinha entregando uma flor ao pai. Nesse instante, ela não sorriu, apenas chorou diante do que via e se perguntou: “O que eu fiz de errado?”. Lamentou essa dor por muito tempo. 

Vinte anos se passaram após o evento traumático e no dia de seu casamento, seus pais não puderam comparecer a igreja, porque se encontravam enfermos em uma cama. Ela desmarcou por três vezes seu casamento na espera da melhora dos pais, o que não acontecia. Até que um dia sua mãe disse a ela: “Não desmarque mais, vá ao seu casamento e dê esse gosto ao seu pai de ver sua filha casar, antes que ele venha a falecer”. 

Obediente, ela seguiu para a igreja para consumar seu casamento, após cinco anos de noivado. Seus pais não compareceram e não houve festa, apenas uma cerimônia rápida na igreja para oficializar seu matrimônio. Seu buquê de noiva era feito de flores cor de rosas e ela não entregou a ninguém, rompendo com a tradição, porque em seu coração aquelas flores tinham um destino certo. 

Após a cerimônia religiosa, muito rápida, ela voltou a casa dos seus pais e com o buquê na mão, entrou no quarto deles. Seu pai estava em uma fase alheia à realidade e já não conhecia mais ninguém. Ele estava deitado em sua cama e sua mãe ao lado. Ela se aproximou dele e falou ao seu ouvido: “ Querido pai, essas flores são para o senhor e mesmo que não sejam as amarelas, receba-as de coração como sinal do meu amor e afeto pelo senhor”. Ela deu um abraço afetuoso no pai que ora se encontrava gravemente enfermo. 

Seu pai abriu os olhos e duas lágrimas escorreram pelo rosto dele. Creio que algumas imagens vieram a luz na mente do pai que justificassem aquelas lágrimas derramadas. Ela lhe beijou o rosto. No dia seguinte, seu pai perdeu totalmente a memória e veio a falecer um mês após seu matrimônio. Sua mãe, também enferma, veio a falecer quatro meses exatos após a morte do pai, no mesmo dia. 

Enfim, creio que o coração daquela mulher, que outrora fora uma criança, sentiu-se grata a Deus por lhe ter dado a oportunidade que sempre esperou:: "Entregar as flores ao pai amado". 

Reflito agora sobre que tipo de  mulher nasce de uma criança que sofreu violência doméstica? A resposta poderiam ser muitas, mas ela conduziu sua vida com integridade, reconheceu o valor do perdão.

Penso que esta história possa nos remeter `a reflexões diárias sobre um mundo sem violência. E que o respeito à dignidade humana, sobretudo de uma criança indefesa, deva ser um imperativo nos lares. 


Ana Sá Peixoto.

segunda-feira, 2 de julho de 2012




CÚMPLICE COMO O SEU ESPELHO

Hei de agir de forma tranquilizante.
Hei de possuir a segurança de um pai
E a compreensão de uma mãe.
Direi certas coisas a você que somente uma mulher diria...

Falarei do seu corpo com a delicadeza

E sutileza de uma mulher...
Evocarei e falarei de sensações
Das quais somente uma mulher é capaz de falar.
Terei paciência...

Darei tempo para você

Preparar-se,
Fantasiar-se,
Encantar-se,
Excitar-se,
Entregar-se...

Jamais mostrarei desejo ou urgência.

Saberei bater em retirada,
Dar um passo atrás...

Saberei sempre adiar minha urgência,

Conterei meu ciúme avassalador,
Minha fúria de Beethoven...

A cada instante farei a você

Uma promessa:
“Não lhe peço para mudar,
Não invadirei a sua individualidade;
Serei um detalhista,
Mas sem invadir a sua intimidade!”

Mas também serei alegre e impaciente

Como um adolescente!
Cúmplice como o seu espelho!

Farei com que você se sinta

Como quando está
Diante do espelho admirando-se...
Descobrindo-se...
Fantasiando-se...

Darei voz às suas fantasias

Mais secretas...
E ajudarei você a criar outras!

Farei carícias em seu corpo

E a excitarei com a naturalidade
Com que você o faria!...

Pedirei que relaxe...

Relaxe;sinta minhas mãos,
devagar, suaves...

Pedirei, com meus lábios, 

tocando os seus lábios desenhados,
Que se abra aos elogios,
Às palavras sussurradas...
Hei de sugerir o que
Você gostaria de pensar
Para excitar-se...

E quando fizermos amor

Nem você mesma saberá por que o fez,
Tal a naturalidade com que
Tudo aconteceu!...

E, enfim, farei com que você se sinta

Mais jovem a cada ano!
Tudo isso, meu amor, porque...
porque eu te amo...
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Texto extraído do livro A ERA DA BANALIZAÇÃO (Poesias), de Autoria do escritor e poeta Adhemyr Fortunatto. Para ler mais, acesse o site: http://olivro-reflexoes.blogspot.com.br/


domingo, 1 de julho de 2012




                          CLAMANDO AOS SETE VENTOS




Que os ventos da chuva lavem meu rosto, impedindo qualquer sofrimento que possa se acercar de mim e que se for inevitável, que eles me sinalizem a melhor forma de me libertar.

Que os ventos da noite me reconfortem como o abraço sempre esperado em forma de acalanto nos meus momentos de solidão.

Que os ventos dos mares renovem meus sonhos e faça do sal a cura para as minhas incertezas e medos diante das coisas que eu ainda não conheço.

Que os ventos das florestas me lancem a lugares merecidos e sonhados, trazendo-me a paz interior e as minhas realizações.

Que o vento das montanhas me acolham e me tragam o equilíbrio para caminhar serenamente nas estrada da vida.

Que os ventos dos rios purifiquem cada dia mais o meu ser, impedindo que eu me torne insensível às demandas da minha jornada. 

Que os ventos do deserto me orientem sempre na busca do sentido da vida...Uma vida mais humana


Ana Sá Peixoto

sábado, 30 de junho de 2012



                                VIVENDO SOB ESCOMBROS




Quero lhe contar uma história de violações da dignidade humana

Certa vez, conta a história, em 1755, Lisboa sofreu um violento terremoto, dizimando milhares de pessoas e, como medida de emergência, o Marquês de Pombal, então Ministro de D. José I (Rei de Portugal), determinou severamente:

"Enterrem os mortos, cuidem dos vivos e fechem os portos"

Duras palavras, porém necessárias.

A alma humana também é região propicias a tais abalos e quando eles acontecem, achamos que não os merecemos.

Comparo a violência sexua a um desses abalos de grande magnitude que nos acometem de súbito. É muito difícil sobreviver a situações tão inóspitas. Acreditamos que seja tarefa penosa demais e que não suportaremos tamanha dor.

Ela passou por estágios de negação, revolta, medo, culpa, angústia...Desespero. E enquanto não chegou ao estágio da "aceitação da realidade", viu seu cotidiano destruído.

Realmente, penso não ser nada fácil focar o futuro quando tudo ao nosso redor desmorona. 

Sim, foi dessa forma que ela se sentiu, como se estivesse vivendo sob escombros. Acreditou que seus sonhos, ideais e planos traçados melimetricamente, ficaram soterrados.

Nesses momentos que se seguiram ao evento traumático, ela acreditou que nào sairia jamais dos escombros e que nào haveria salvação para seus tormentos. 

As horas para ela se passavam sem qualquer importância e a sensação de sufocação foi imapactante, porque teve medo de denunciar seu agressor, mantendo, dessa forma, o doloroso pacto do silêncio.

Ela sentia vontade de gritar e não podia porque o medo lhe assombrava a alma, mas quando conseguia, era sempre um grito que soava pra dentro. 

Penso que quando se é vítima desta agressão, sente-se que a força (energia física) e a coragem (energia moral) começam a se esvair da pessoa e tem-se a nítida impressão de que não se sobrevirá a esse doloroso abalo.

Ela imaginou que esse tormento nunca teria fim, o que não é verdade.

Quando se descobre, mediante a dor, que dentro de nós não existem apenas a força e a coragem que nos sustentam a vida. Existe também a fé que, em decorrência dos percalços da vida, muitas vezes negamos a sua existência. 

A fé que descrevo, não é apenas a crença no sagrado, mas também em nosso eu mais profundo, ou ainda nas pessoas que estão prontas a nos ajudar (com todos os mecanismos que nos têm a oferecer). Esse sentimento de ajuda se traduz nos apoios terapêuticos e na lei de proteção as mulheres vítimas de violência doméstica.

Esse sentimento de acolhimento pode nos socorrer das ruínas de nossa alma e corpo, fazendo-nos reencontrar o sentido da vida e o brilho nos olhos que, outrora, frente a grande dor, perdemos.

Lembre-se: Reconstruir para recomeçar é a tarefa de todos aqueles que sofrem abalos dessa natureza.

E quando alguém se encontrar no epicentro de um terremoto dessa magnitude, lembrem-se das palavras do Marques, para podermos compreender que:

"Enterrar os mortos" é, sem dúvida, parar de explorar a tragédia e de se recriminar por ela.

"Fechar os portos" é se fortalecer para uma nova vida. É impedir que novos problemas sobrevenham enquanto curamos nossas feridas. É manter o foco na reconstrução!

"Cuidar dos vivos" é tomar conta do presente e ter cuidado com o que restou. É valorizar o que há de melhor em nossas vidas. É resgatar, das aflições sofridas, a força que nos conduzirá para dias melhores.

Depois dessa longa jornada sob os escombros, que você, querida leitora, possa ser capaz de erguer um lindo monumento em sua alma, edificando um dois sentimentos mais nobres que existem no ser humano: A coragem e a paz interior.

Que possamos abraçar com carinho as vítimas dessa dolorosa violência, que mesmo no silêncio, conseguiram traduzir suas dores.

A violência sexual é uma das maiores agressões à dignidade humana. Denuncie. E que o respeito seja um imperativo em todos os lares.

Ana Sá Peixoto